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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

CLOWN


Minha experiência com o Clown é, sem dúvida alguma, bastante prática. Não existe outro modo de se pesquisar a linguagem do Clown, principalmente quando falamos do Clown da Tradição Circense, que não se estuda apenas pelos livros, mas também com pesquisa de campo e contato com os artistas circenses.

Falar em Tradição Circense do Clown significa referir-se à evolução desta linguagem cômica ao longo de séculos de fazer circense na História da Humanidade. Esta tradição é transmitida sobretudo oralmente, pelas famílias circenses, que ou conservam consigo este conhecimento e produção, ou transmitem-no a outros artistas. Ainda assim, o próprio público mantém esta memória viva, do que se conclui que a dificuldade de acesso a espetáculos tradicionais de fato restringe a difusão deste conhecimento. Ainda assim, é evidente, o Circo não morrerá.

Há uma corrente que prega a distinção entre Clown e Palhaço no sentido de teatralizar o Clown e afastá-lo da Arte Circense. Por incrível que pareça, essa corrente é forte e resistente ainda hoje, apesar das tantas pesquisas e estudos sobre Clown que ela mesma produz. Grande parte dessa corrente, que deveria esclarecer o assunto com conceitos bem fundamentados, desconhece as raízes circenses e, assim, toma hipóteses como verdades práticas inerentes ao trabalho do Clown.

Em geral, os teóricos do Clown predominam como representantes dessa corrente, e classificam o Clown e o Palhaço como trabalhos distintos e distantes, criando mais dúvidas que esclarecimentos. Se pudermos colocar esse entendimento em palavras genéricas, elas seriam como se segue abaixo:

O Clown é um trabalho muito mais complexo e refinado que o Palhaço, porque o Clown é do teatro, é minimalista e sutil, e íntimo ao público através de seu olhar profundo e sincero, enquanto o Palhaço é do picadeiro, é exagerado e grotesco, faz tudo grande para ser visto por todo o público que o rodeia.

Esse entendimento me surpreende porque afasta o Clown do Circo, sua origem histórica. Tristemente, a distinção entre Clown e Palhaço contamina muitos iniciantes nos cursos de Clown, cursos que pipocaram por todo o país nos últimos anos. A própria noção de Clown de muitos professores é confusa, e várias vezes me deparei com pesquisadores orientadores pregando que Clown que se preza é MUDO! Como assim? Será um tipo novo de mímico? Eis portanto um dos motivos de se confundir o Clown com o Mímico, quando este faz cenas cômicas. Marcel Marceau, o famoso mímico francês, tem muitas cenas cômicas em seu repertório, e nem por isso ele é um Clown.

Há um grande equívoco aí, um desprezo ao fazer circense e um desprezo ao artista de família circense, que continua resistindo à falta de apoio e às sucessivas crises econômicas com criatividade e muita coragem. É como se o Palhaço da Tradição Circense fosse um trabalho sem critério nem estudo, enquanto que o Clown do Teatro, mais elitista, requeresse uma delicadeza desenvolvida através de anos de estudo acadêmico e científico, estudo restrito aos intelectuais e teóricos do Teatro.

Desconhecer a prática circense, e até mesmo ignorá-la diante da classificação acadêmica mencionada, é negar o Clown, não somente por negar sua origem como também por negar a sua essência. O Clown possui uma comicidade específica, é uma linguagem muito antiga, uma Arte tradicional, e assim merece todo o respeito.

Não diferencio Clown de Palhaço, mas não confundo o Clown com o Mímico, pela pesquisa circense que realizo. Considero a evolução histórica do fazer circense como fonte primeira da existência do Clown, e portanto, esta pesquisa é fundamental.

No Circo, as regras para o Clown são poucas e claras: o Clown é o personagem circense que traduz a criança, para a qual o Circo cria toda a sua fantasia. Seja esta criança jovem ou adulta, a fantasia de um espetáculo circense busca encontrar no público uma identificação pessoal e emocional, transportando-o para a infância comum a todos, na qual a fantasia se realiza, os sentimentos se expressam com naturalidade e a imaginação ganha vida além da limitação humana.
Não se trata de utilizar efeitos especiais – como as superproduções milionárias e shows, cujas marcas pagamos caro para consumir. O Circo, personificado nos Clowns, procura em suas apresentações fazer o público redescobrir, na vida comum e concreta, na dura e séria realidade do próprio público, o que encanta a criança em seu aprendizado dia-a-dia. Redescobrir-se, descobrindo o que um ser humano como qualquer um de nós é capaz de fazer, é um dos efeitos mágicos que o Clown tem sobre a platéia. Ele demonstra a todo instante como coisas simples e bobas da vida cotidiana podem mexer tanto com nossa humanidade.
Por isso o Circo Tradicional é e deve ser popular, deve estar próximo do povo, e tal característica faz parte da natureza prática do Clown. Engana-se quem diz que Clown não é para criança, assim como faz um outro tipo de trabalho aquele que não vê no Clown esta íntima ligação com o lúdico infantil, pois é esta uma de suas principais essências.

Quem aposta na diferenciação entre Clown e Palhaço, e considera o Palhaço tão distante do público como o seu artista-criador do saber científico, na minha opinião, também reforça o preconceito que existe em relação ao artista circense que atua no picadeiro. Infelizmente o artista de Circo é considerado por muitos um artista inculto, inferior, rústico e grotesco, sem a sensibilidade que a Arte demanda. Às vezes, é até desconsiderado como artista-criador.

Discordo desta diferenciação diante de minha pesquisa, que começou quando tive meu primeiro contato com a família tradicional Colombaioni, de palhaços italianos. É a partir da orientação dela, na pessoa de Léris Colombaioni, que comecei meus estudos sobre a Tradição do Clown. Nutro imenso respeito pelo artista circense, por seu saber notável que tanto serviu e vêm servindo aos teóricos da academia inclusive, e defendo ser o Clown da Tradição Circense tão sutil e refinado quanto qualquer outra criação da Arte Cênica. Defendo o saber circense como Ciência, que envolve tantas áreas, da anatomia humana à física, da engenharia à antropologia.

Circo e Teatro sempre se comunicaram, evoluíram juntos, compartilham diversos recursos e linguagens artísticas, dentre os quais destaco a Mímica, a Dança, a Acrobacia e a Música. Mas é fato que, com a evolução da sociedade, a produção circense modificou-se, adaptou-se, e não depende mais do picadeiro. O Circo Tradicional é, como sobrevivente secular, ligado ao seu tempo presente. Ele é contemporâneo e social. É preciso preservar a Tradição Circense, e para tanto, saber identificá-la como Arte e conhecê-la. E conhecer o Circo e o Clown implica conhecer sua prática, que cada vez mais deixa o picadeiro para se realizar nos palcos, shows, eventos, e em uma série de outros espaços, como os hospitais. Não fosse o Circo, como existiria o Clown?
Dizem ser difícil esse contato com o Circo Tradicional, e o discurso de que o Circo está morrendo, um discurso muito antigo – lembra a pesquisadora Dra. Ermínia Silva sobre a História do Circo –, certamente reforça a crença de que é difícil encontrar o Circo hoje. É difícil não sabermos o que procuramos.

Me admirei uma vez, conhecendo a autora de um desses livros de definições teóricas de Clown, quando ela confessou nunca ter visto um espetáculo de Circo. Para quem escreve livros a respeito, me pareceu bizarra a declaração, a menos que o faça somente pelo dinheiro que rende a publicação de tal tema. Neste caso, ai de nós, desavisados.
O Clown Tradicional é inconfundível quando se o conhece na prática. Pena que, às vezes, me pareça que esse Clown não interessa a tantos artistas contemporâneos como interessava há algumas décadas. É provável que a maioria, agora, procure a comicidade tão em moda do Humor Stand-Up, mas independente disso, o Clown Tradicional sobrevive. E continuará sobrevivendo, adaptando-se a outros espaços, linguagens e recursos.

Falando de acessibilidade, existem hoje circulando muitos vídeos oficiais e não-oficiais de grandes Clowns da Tradição Circense. Existem inúmeros artistas circenses na história do Cinema, em filmes e documentários bastante acessíveis, além de participações especiais em produções para a televisão e para o teatro. Este material é encontrado com certa facilidade, o que claro, não substitui assistir ao vivo um espetáculo tradicional circense, com toda a diversidade artística que o caracteriza.

Então, como se pesquisar o Clown? Como estudá-lo? É claro que a possibilidade se dá na medida do interesse do pesquisador. O material está, sim, disperso. É preciso garimpá-lo, procurar registros históricos dos nomes dos artistas, conhecer as famílias, alcançar depoimentos, documentos, notas em jornal, aparições filmadas, fotos, conhecer se possível as pessoas que estudam e praticam atividades circenses. Ainda que seja difícil ir a um Circo de Lona, só não se aprofunda no estudo do Clown quem tem outros objetivos.

Além do material circense em circulação, das referências históricas e fontes que ainda podemos encontrar, acredito que para quem não quer apenas compreender o Clown, mas sim vivê-lo, a prática é o melhor estudo. Isto porque o Clown é sem dúvida humano, infantil, cômico e popular, e busca sempre, como fim principal, o RISO do público.
Para se estudar com profundidade o Clown, o público é nossa grande referência, e seu riso nossa melhor orientação. O público espera a comicidade da imagem do Clown, e sendo assim, um Clown que não objetiva o riso não é Clown... é um outro tipo de trabalho cênico, servindo-se da estética circense apenas como apelo comercial, a exemplo de tantos livros teóricos sobre o Circo, e de tantos cursos de iniciação ao Clown que pipocam por aí.

Concluindo, portanto, o estudo do Clown requer o estudo do Circo Tradicional, de sua evolução e história, das referências da prática circense, das fontes humanas da produção circense. Estudar o Clown requer, ainda, preservar a tradição, mantendo-se fiel à verdade dos fatos e reconhecendo o mérito dos artistas circenses e sua luta pelo Circo.

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