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quinta-feira, 14 de abril de 2011

ATRAÇÃO PELA PROFUNDIDADE

A uma jovem de Stuttgart, que sabia fazer belos desenhos, um crítico, que não nutria más intenções e que desejava apenas ajudá-la, disse-lhe quando de sua primeira exposição: "Seu trabalho possui talento e expressividade, mas apresenta pouca profundidade." A jovem não compreendeu as palavras do crítico e logo esqueceu sua observação. Entretanto, dois dias depois, saiu no jornal um artigo do mesmo crítico onde se lia: "A jovem artista possui grande talento, e seus trabalhos, à primeira vista, causam uma agradável impressão; infelizmente, apresentam pouca profundidade." A jovem começou então a refletir. Olhou para seus desenhos e remexeu em suas velhas pastas. Examinou todos os seus desenhos, terminados ou por terminar. Fechou os seus frascos de tinta, lavou os pincéis e saiu a passear. Na mesma noite, foi convidada para uma festa. As pessoas pareciam ter aprendido de cor a crítica e alardeavam o talento que seus desenhos refletiam e a agradável impressão que causavam à primeira vista. Todavia, de ouvidos bem abertos, das conversas e dos que estavam de costas a jovem podia ouvir: "Ela não tem profundidade. É isso. Ela não é má, embora apresente pouca profundidade." Durante toda a semana, a jovem não desenhou nada. Permanecia sentada e silenciosa em seu apartamento, sem falar com ninguém, e seu único pensamento dominava e devorava todos os outros, como um polvo: "Por que não tenho profundidade?" Nas duas semanas seguintes, a jovem tentou desenhar novamente. Entretanto, não foi além de uns esboços desajeitados. Às vezes não conseguia sequer traçar uma linha. Certa vez suas mãos tremiam tanto que não conseguiu enfiar o pincel no vidro de nanquim. Começou então a chorar, gritando: "E verdade, eu não tenho profundidade." Na terceira semana dedicou-se a analisar os livros de arte, a estudar as obras de outros desenhistas, a freqüentar galerias e museus. Lia tratados de arte. Entrou numa livraria e pediu o livro mais profundo que houvesse na loja. Deram-lhe a obra de um certo Wittgenstein, mas não serviu para nada. Quando de uma exposição no museu da cidade — "500 anos de desenho europeu" —, a jovem inscreveu-se num seminário ministrado pelo seu mentor artístico. Enquanto contemplavam uma lâmina de Leonardo da Vinci, avançou e perguntou: "Desculpe, mas o senhor pode me dizer se este desenho tem profundidade?" O professor de arte, com um grande sorriso, respondeu: "Senhorita, se sua intenção é zombar de mim, deveria ter nascido antes!" Toda a classe caiu na gargalhada. Ela, todavia, foi para casa e chorou amargamente. A jovem começava a tornar-se cada vez mais ausente. Embora jamais deixasse o ateliê, não podia trabalhar. Tomava comprimidos para ficar acordada, sem saber por que devia ficar acordada. E, quando se cansava, dormia ali mesmo, na cadeira, pois temia ir para a cama com medo da profundidade do sono. Começou a beber, e deixava a luz acesa durante a noite. Quando lhe telefonou um marchand de Berlim, pedindo-lhe alguns desenhos, ela gritou: "Deixe-me em paz! Eu não tenho profundidade." Às vezes modelava plastilina, mas não fazia figuras concretas. Afundava os dedos na massa ou, no máximo, fazia algumas bolinhas. Além disso, começou a descuidar-se do asseio pessoal e da limpeza da casa. Seus amigos andavam preocupados. Diziam: "Isso é grave, é uma crise. Pode ser de ordem pessoal, artística ou financeira. No primeiro caso, nada podemos fazer; no segundo, deverá superá-la sozinha; no terceiro, poderíamos organizar uma coleta, mas seria penoso para ela." Assim, limitaram-se a convidá-la para comer e para festas. Ela sempre recusava, dizendo que devia trabalhar. Todavia, não trabalhava nunca; ficava no quarto, com olhar ausente, amassando plastilina. Um dia, aborrecida consigo mesma, aceitou um convite. Um rapaz, que a considerava atraente, quis levá-la para casa e dormir com ela. Ela disse que não havia qualquer inconveniente, pois gostava do rapaz; contudo, desejava preveni-lo de que ela não tinha profundidade. Com isso, o rapaz desistiu. A jovem, que antes fazia tão belos desenhos, piorava a olhos vistos. Não saía mais, não recebia ninguém; e por falta de movimento engordou, e por causa da bebida e dos comprimidos envelheceu rapidamente. Seu apartamento aninhava sujeira e seu corpo cheirava mal. Tinha herdado 30.000 marcos. Com isso, viveu três anos. Durante esse período fez uma viagem a Nápoles, não sabemos por que motivo. Se alguém lhe perguntava alguma coisa, limitava-se a um balbucio incompreensível como resposta. Quando o dinheiro acabou, ela rasgou todos os seus desenhos, subiu à torre da televisão e saltou de uma altura de 139 metros. Naquele dia soprava um vento forte, razão pela qual seu corpo não se desfez no asfalto, ao pé da torre, mas foi levado por sobre um campo de trigo até o bosque e caiu entre os abetos. De todo o modo, ela morreu logo. A imprensa sensacionalista acolheu o caso, agradecida. O suicídio em si mesmo, a interessante trajetória, o fato de a jovem ser considerada uma artista promissora, e de mais a mais, bonita, eram ingredientes de grande valor jornalístico. O estado catastrófico de seu apartamento foi alvo de muitas fotos: milhares de garrafas vazias, sinais de destruição por toda a parte, lâminas rasgadas, pedaços de plastilina grudados nas paredes e até excrementos pelos cantos. As redações arriscaram, inclusive, um segundo editorial e uma reportagem na terceira página. No suplemento de cultura, o crítico mencionado no início escreveu um artigo onde revelava toda a sua perplexidade pela jovem que acabara tão terrivelmente com a própria vida. "Para nós que ficamos", escreveu, "é uma profunda aflição ver uma jovem com talento não encontrar a força necessária para se firmar no cenário cultural. Porque, para tanto, é preciso algo mais do que o mero patrocínio do Estado e de particulares; o importante, no âmbito pessoal, é a dedicação absoluta e, no mundo artístico, uma atitude estimulante e receptiva. Dir-se-ia, contudo, que nessa personalidade despontava desde o início o germe desse fim trágico. Já não observamos em seus primeiros trabalhos, apesar da aparente ingenuidade, essa terrível ruptura que se traduz numa férrea disciplina cromática, com a qual exprime sua mensagem, já não adivinhamos a espiral centrípeta e dilaceradora de uma rebelião da criatura contra o seu próprio eu, visceral e abertamente destruidora? Não percebemos essa fatídica, e até diria inexorável atração pela profundidade?" Patrick Süskind

Um comentário:

  1. Uma questão:
    Quem és?
    nil_p_s@hotmail.com
    orkut - http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=1273412746347345700
    Abratzs

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